domingo, 27 de junho de 2010

Algumas considerações a respeito do canibalismo


Renée Hartevelt e seu cadáver esquartejado por Sagawa

O mundo canibal sempre oscilou entre o lado cultural antropofágico e o lado patológico. Mas nas sociedades civilizadas é considerado uma aberração, um traço de psicopatia. Em alguns países é considerado crime hediondo. Em outros, não. No entanto, o ato de "devorar" ou "ser devorado" é amplo e merece alguns parênteses.
Nahlah Saimeh, médica especialista em medicina legal e diretora do Centro de Psiquiatria Forense da Vestfália, Alemanha, diz que a antropofagia é um componente habitual das relações afetivas e sexuais. Os atos de beijar, morder e chupar fazem parte do repertório das carícias trocadas entre pais e filhos e entre casais; expressam proximidade emocional e desejo de ter o outro, simbolicamente, “dentro de si”. Esse desejo erótico de incorporar a pessoa amada transparece quando se diz que alguém é “gostoso” ou quer “comer” o outro. A fantasia de devorar ou ser devorado também está presente em diversas fábulas e brincadeiras de crianças e adultos.
O psiquiatra e psicanalista Robert J. Stoller (1924-1991), da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, reconheceu na modalidade de canibalismo sádico uma forma de ódio erótico cujas raízes estão no desenvolvimento, na infância, da identidade masculina: o bebê se sente fundido à mãe, seu corpo e seu psiquismo não existem separados da pessoa que lhe serve de referência no mundo. Com base na teoria da psicanalista Melanie Klein é possível pensar que, no decorrer do processo de individuação, o garoto se reconhece como possuidor de um corpo próprio, de homem, não de mulher. Então lutará constantemente contra uma nova fusão com a mãe que, no desenvolvimento de sua identidade masculina, pode se converter temporariamente em uma “mãe má”.
O psiquiatra e psicanalista alemão Eberhard Schorsch (1935-1991) analisou outros aspectos da perversão sexual. Segundo ele, as fases da perversão se dividem em quatro. Na primeira, fantasias sexuais desviantes já se mostram intensas, mas só emergem esporadicamente. Na segunda, aparecem com regularidade, como penosos conflitos. Na terceira etapa a sexualidade quase não pode ser vivenciada sem essas fantasias e os desencadeadores da crise não são mais debelados. Neste ponto, o processo se torna irreversível. Finalmente, na última fase, as fantasias sexuais desviantes transformam-se em novos rituais e passam a ocupar espaço cada vez maior.
Um dos canibais mais famosos da história, o japonês Issei Sagawa, comeu sua professora de alemão em 1981 (foto acima de seu cadáver e necrópsia), deixou um registro escrito da cena: “Corto seu corpo e levo a carne à boca inúmeras vezes. Então fotografo seu cadáver branco com ferimentos profundos. Faço sexo com seu corpo. Quando a abraço, ela emite um sopro, me assusto, ela parece viva. Eu a beijo e digo que a amo. Então, arrasto seu corpo para o banheiro. A essa altura estou exausto, mas corto sua anca e coloco a carne em uma assadeira. Depois de cozida, sento-me à mesa usando suas roupas de baixo como guardanapo. Elas ainda têm o cheiro de seu corpo”. O crime foi cometido na França. Sagawa, um estudante de literatura de 33 anos, matou a tiros a holandesa Renée Hartevelt (foto acima), de 25 anos. Pedaços dela, cuidadosamente embrulhados, foram encontrados na geladeira dele. Ele não resistiu à prisão e confessou o crime. Foi levado para uma clínica psiquiátrica francesa, onde foi classificado como “psicótico intratável”. Depois de repatriado ao Japão, deixou o hospital em 1985, graças à pressão do pai, um rico empresário, e hoje é uma espécie de ídolo pop bizarro.
Em geral, as pessoas com sintomas perversos não chegam a ter uma sexualidade saudável, já que toda sua intimidade está impregnada pelo medo.

Impulso sexual reprimido leva ao canibalismo

O rosto expressivo do canibal Cocaign: impulso sexual como estímulo

Do Terra (27/06) - Um preso julgado por canibalismo na França, apelidado de "Hannibal Lecter" francês, afirmou nesta quarta-feira no tribunal que um impulso sexual o levou a matar seu companheiro de cela e a "curiosidade" sobre o gosto da carne humana, a cozinhar e comer um pedaço de pulmão.
O acusado, Nicolas Cocaign, cujo caso despertou comparações com o do canibal Hannibal Lecter, personagem fictício do filme O Silêncio dos Inocentes, relatou a barbárie cometida em 2 de janeiro de 2007 na prisão de Rouen, oeste de França, e acabou com a vida de Thierry Baudry, de 31 anos.
Baudry, preso por agressão sexual, havia ido ao banheiro e, quando voltou à cela de 11 m², que dividia com outros dois presos, foi atacado por Cocaign.
"Disse a ele: 'vá lavar as mãos'. Ele o fez. Nesse momento, me olhou de rabo de olho, de um jeito ruim", relatou Cocaign no Tribunal de Rouen. O acusado, que tinha 35 anos na época dos fatos, disse então que não conseguiu se controlar e subiu na cama da vítima. "Tive um impulso sexual, uma elevação de adrenalina", disse Cocaign. "Tirei a roupa dele. Os golpes iam e vinham, com os pés, os punhos", continou o acusado.
Em seguida, Cocaign desferiu em Baudry "uma dezena de golpes nas costas, no pescoço e no tórax" com uma tesoura e, usando um saco de lixo, o sufocou "durante cinco minutos" para assegurar-se de que estava morto.
Após o crime, decidiu preparar seu jantar. Foi neste momento que - contou - teve a ideia de comer o coração da vítima. "Agarrei uma lâmina de barbear e abri o peito dele. Enfiei minha mão e peguei o que achava ser o coração, mas na verdade era um pedaço de pulmão, que pus em um recipiente", disse.
Nicolas Cocaign comeu uma parte crua e o resto ele preparou com cebolas em uma frigideira. "Fiz por curiosidade, para comer carne humana", explicou.
O terceiro colega de cela, testemunha do crime, indiciado por cumplicidade, mas finalmente absolvido, se suicidou na prisão.
A corte ouviu, entre outros, o testemunho do psicólogo Lucien Venon, que analisou o acusado. Ele relatou o que Cocaign lhe contou, sem demonstrar remorso, em junho de 2007.
"O que é terrível é que é deliciosa. Tem gosto de cervo. É macia. Gostei de ter feito o que fiz", contou Cocaing ao psicólogo, disse Venon à corte.
Especialistas foram convocados para tentar estabelecer a responsabilidade penal do acusado e sua saúde mental. O júri deverá anunciar seu veredicto esta sexta-feira, após as alegações finais da promotoria e da defesa.
O crime de Cocaign, que cumpria na época pena por roubo a mão armada e aguardava julgamento por tentativa de estupro, pôs em destaque os problemas do sistema penitenciário francês, seu mal funcionamento e sua superlotação.
Cocaign disse na segunda-feira à corte que tinha um longo histórico de problemas mentais e que o crime poderia ter sido evitado se as autoridades da prisão não tivssem ignorado seus repetidos pedidos de ajuda psicológica.
Durante os primeiros dias do julgamento, a Justiça examinou os problemas na prisão de Rouen onde, segundo um relatório, havia "superlotação crônica". O corpo de Tierry Baudry foi descoberto pelos guardas da prisão no dia seguinte de seu assassinato.
Com uma das taxas de suicídios mais elevadas da Europa, as prisões francesas são regularmente criticadas pela Corte Europeia de Direitos Humanos por não prover as necessidades básicas dos detentos.

Análise: O que leva-nos crer que um impulso sexual reprimido ocasiona e delibera consequências drásticas no comportamento humano. Como esse. Pela atitude canibal motivada por curiosidade de Cocaign (que já deveria ter o desejo reprimido por muito tempo em sua vida), aproveitou-se do "abuso de poder" e comeu órgãos do companheiro de cela. Destaco alguns pontos desta análise aprofundada:
- Cocaign era o líder da cela e, por isso, ostentava poder sobre os demais (forma de compensação da exclusão social que um detento convive);
- O descontrole passa pela energia reprimida e, sem o mínimo de consciência, sai em forma de violência;
- Há no canibalismo um claro impulso sexual voltado para a oralidade (sentir o gosto da carne humana com a certeza de que foi fruto de uma presa conquistada);
- Porém, Cocaign tinha consciência de sua debilidade psicológica, mesmo com extremo requinte de crueldade, mas distorcida do real valor de julgamento;
- Vejo como atitude compensatória do desejo sexual de Cocaign por Thierry, não deliberada pelo ato sexual, mas desferida em transferência pelo impulso antropofágico, que também é sexualizado.

domingo, 11 de outubro de 2009

Caráter epidemiológico da bipolaridade conduz ao caos

O que Sperling traz é um retrato psicológico e social dos atuais tempos, nos quais percebemos (gestalten) praticamente o tempo todo, ao redor. Muito comum pessoas, hoje em dia, oscilarem o humor drasticamente. A ciclotimia presente esbarra no próprio conceito de possível bipolaridade, que já esbarra em questões de saúde mental. Encontramos esta "ciclotimia" frequentemente, seja nos rostos, palavras, ações, consequências humanas. Mas, em virtude das influências externas e ambientais, indivíduos sentem-se "entregues" à bipolaridade integralmente. A busca pelo prazer gera a euforia e a frustração de não ter tido, a "depressão". Conheço inúmeras pessoas assim. Essa necessidade desenfreada por "viver a vida intensamente" é uma faca de dois gumes na garganta.
A bipolaridade afeta de 5% a 7% da população, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). Creio eu que essa porcentagem é mais líquida do que sólida. Tempos atuais aproximam a humanidade de uma bipolaridade mais evidenciada. Vejo-a mais como "epidemia" do que como focada nos quase 7% conhecidos. O cenário de miserabilidade social e intelectual, associado a este quadro de bipolaridade, devem conduzir a humanidade ao caos. Sem precedentes.

Psiquiatra alemão diz que a humanidade é bipolar

Concordo plenamente com as visões de Wolfgang Sperling, psiquiatra e professor na Clínica Psiquiátrica e de Psicoterapia da Universidade de Erlangen-Nürnberg, em Erlangen, na Alemanha. Em entrevista à revista Época desta semana, diz que a humanidade é bipolar e está sofrendo de Síndrome Bipolar Global (SBG).
Sperling pesquisa os efeitos epidemiológicos do alcoolismo e dos distúrbios de comportamento, como a síndrome do pânico, a desordem bipolar e a esquizofrenia. Veja trechos de Sperling e que complementam as análises que venho fazendo aqui, por este blog:
"A humanidade começa a manifestar claramente momentos de alternância emocional entre a euforia e a depressão. O incrível é que o sentimento de depressão que se alastrou pelo mundo há um ano já está sumindo. As Bolsas voltaram a subir – sem razão aparente alguma. É o mesmo processo. Ninguém pode detê-lo. O mesmo se dá com a pandemia de gripe suína. Não se pode contê-la. Essa é a conexão entre dois eventos muito diferentes, um na esfera econômica, o outro na esfera da saúde. A humanidade sofre de síndrome bipolar global."
Síndrome bipolar global (SBG)?
"A síndrome bipolar é a alternância brusca entre dois sentimentos muito diferentes que causam ansiedade. De um lado, temos as emoções ligadas ao estado de depressão. De outro, aquelas ligadas ao estado de euforia, o que chamamos de manias. Para mim, a humanidade começa a manifestar claramente momentos de alternância emocional entre a euforia e a depressão."
A humanidade está doente?
"A psicose bipolar é uma forma de doença psiquiátrica. Se olharmos os acontecimentos dos últimos anos, veremos que a SBG é o fator definidor de tudo o que vem acontecendo no mundo – não só na órbita da economia. Esse fenômeno faz parte das transformações causadas na sociedade pelo advento dos novos meios de comunicação."
Quais são os sintomas da SBG?
"Os principais sintomas são uma ansiedade incontrolável e a dificuldade de reagir de modo adequado aos problemas. No limite, os sintomas se assemelham aos de um paciente com síndrome do pânico. Quem sofre de pânico escolhe fugir dos problemas, deixar tudo para trás. Jamais enfrenta a situação que causa o pânico para buscar uma solução. Na SBG acontece o mesmo. Quando um banco quebra, todos saem correndo."
Há cura para a SBG?
"Precisamos criar alguma forma de terapia global. Por analogia, há vários meios para tratar um paciente com pânico. Usam-se remédios com a função de acalmá-lo. Não por acaso, acalmar os mercados é a prescrição usada pelas autoridades para deter o efeito manada nos momentos de pânico. O mesmo se aplica aos meios de comunicação. Acalmar a mídia significa dizer: 'Não reajam tão rápido, alardeando o mundo de que há uma nova crise. Esperem!'."

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Sociedade subestima Alzheimer, dizem cientistas

Mais de 35 milhões de pessoas sofrem do Mal de Alzheimer hoje em dia, e a previsão é de que o número de casos quase dobre a cada 20 anos, de acordo com um estudo do King's College of London divulgado nesta segunda-feira, dia 21, o Dia Mundial do Alzheimer. O número é 10% maior do que as previsões de alguns anos atrás porque as estimativas não levaram em consideração o crescente impacto da doença sobre países em desenvolvimento.
A expectativa é de que se chegue a 115 milhões de pacientes em todo o mundo até 2050. O estudo é parte do World Alzheimer Report, divulgado pela Alzheimer's Disease International. Mundo envelhecido Segundo o relatório, o aumento da demência está sendo impulsionado pelo aumento da expectativa de vida em países mais pobres. Apesar de a idade ser o principal determinante do Mal de Alzheimer, alguns outros fatores que causam doenças cardíacas - como obesidade, colesterol alto e diabetes - parecem aumentar também o risco de demência. O custo de cuidar dos pacientes de demência não é só uma questão social, mas também econômica, aumentando a carga sobre a população economicamente ativa e os sistemas de saúde, afirma o relatório.
Os avanços nos tratamentos de saúde e nutrição vão ter maior impacto sobre países pobres e, como resultado, o número de idosos deve aumentar rapidamente nesses países.Atualmente, calcula-se que apenas metade dos pacientes de demência vivam em países pobres ou de renda média, mas a expectativa é de que esta proporção suba para mais de 60% dos pacientes até 2050.
Da BBC Brasil.

domingo, 20 de setembro de 2009

O túnel

A missão clínica é uma das mais dignas e heróicas que há. Não vejo minha vida pregressa distante da área clínica. Pelo contrário. De cabeça (corpo e alma) a direção ao túnel que há de ser, imperioso e denso, na busca por melhorias das condições humanas.
Desde março deste ano venho atendendo clientes com problemas e queixas diversas. Há o compromisso do ajustamento, da solidez ao que está líquido e disforme, da contribuição pela reconstrução do todo. Esses clientes passam por situações que envolvem "desilusões amorosas, baixa-estima, crises existenciais, distúrbios crônicos do sono, fobias diversas, despreparo ao lidar com emoções negativas, caminhos íngremes da puberdade e suas fases no universo feminino, transtornos de personalidade, sintomas de esquizofrenia, alucinação e delírios, psicose em alguém que se diz a reencarnação de Lúcifer...".
Agora, um novo desafio: um cliente (com melhor denominação de paciente), do sexo masculino, 30 anos, com duas tentativas de suicídio em sua história. O túnel terá seu encaminhamento. Grande desafio. A luta continua. Eu, a Gestalt, a Gestalt e eu.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

"A Gestalt, ao meu ver, é a chance de arquitetar um novo olhar diante da vida e de si mesmo para o cliente. Aumentar o campo visual, entender o que não é compreendido, ousar alcançar que nunca foi sequer cogitado, sair do quadrado neurótico e ativar conceitos novos, organizados e ajustados, para um novo ser que renasce. Não há como sair pela tangente, visto que esta pessoa caminha com a própria pegada, a pegada própria. É sincero."
Marcus Vinícius Gabriel.

Autoconhecimento: um anti-depressivo necessário

A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou, recentemente, dados preocupantes: a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030, afetando mais pessoas que problemas de saúde como câncer e doenças cardíacas. A saber: atualmente, mais de 450 milhões de pessoas no mundo sofrem transtornos mentais. No Brasil, são 20% das mulheres e 12% dos homens. Esse número, porém, só tende a crescer.
Segundo o psicólogo Paulo Tessarioli, existem meios de se prevenir contra a depressão. "O autoconhecimento é o ponto de partida para esta prevenção. Estar consciente da sua história é fundamental. Quem é você? Quais são suas raízes? O sentimento que temos em relação a nós mesmos, às pessoas e ao mundo faz muita diferença. O desenvolvimento da resistência contribui para evitar a depressão", disse.Tessarioli explica que a depressão está associada a diversos fatores. Porém, o que mais contribui para desenvolver a doença é o estresse.
A afirmação vai de encontro com outro ponto levantado pela pesquisa da OMS. Segundo a organização, os países pobres são os que mais sofrem com o problema, já que são registrados mais casos de depressão nestes lugares do que nos países desenvolvidos. "Isso acontece porque as dificuldades econômicas são por si só geradoras de estresse, pois, dependendo do seu grau, não conseguem suprir necessidades básicas de sobrevivência e segurança." A depressão será também, de acordo com a OMS, a doença que mais gerará custos econômicos e sociais para o governo, devido aos gastos com tratamento para a população. A doença muitas vezes é confundida apenas com uma tristeza, porém é muito mais grave e precisa de acompanhamento médico. "A depressão é uma doença que afeta todo o organismo, assim só é possível a cura quando se faz um tratamento com profissional." Outro ponto importante, de acordo com o psicólogo, é não confundir uma tristeza passageira com depressão. "Geralmente, sabemos os motivos que nos deixam tristes. Pode ser por causa do término de um namoro, ou do aumento de salário que ainda não foi concedido. Porém, o motivo desta minha tristeza eu conheço e sei que posso melhorar em breve, quando esta situação mudar. Na depressão não se sabe o motivo daquela tristeza toda."
Os sintomas da depressão são mais complexos e estão ligados à irritação, sono ou falta dele, desânimo, desesperança, falta de energia, momentos de inquietação, agitação, ansiedade, angústia, falta de apetite ou excesso dele, isolamento, ideias suicidas (em alguns casos), entre outros.
Especial para o portal www.terra.com.br

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A mágica

Buscamos ser mágicos em Gestal-terapia. Não por causa daquelas ‘curas’ instantâneas e milagrosas do Perls, não. Mas porque sabemos que nós os seres humanos somos ‘mágicos’, encantados. Ainda que, por motivos que talvez um dia encontremos a lógica, vivamos tão frequentemente alienados, e mesmo interditados neste e deste poder de encantamento, que não só nos é inerente, como constitui a dimensão que nos é mais originária e característica. Dito assim, que somos mágicos, encantados até parece uma coisa extraordinária. Mas, nada. É o que nos é mais essencial. Ocorre que, em essência, somos seres ativos. Além de sermos reflexivos, e comportamentais, somos em essência ativos. Isto permite o que, na bela linguagem do I Ching, é o nosso poder de fazer com que “do invisível brotem efeitos visíveis.” Do intangível brotem efeitos tangíveis... É isso o que chamamos de ação.
Ocorre que, no mais íntimo, no mais originário de nós; em nosso modo pré-reflexivo de ser, em nosso modo pré-comportamental de ser, em nosso modo pré-pragmático, anteriormente mesmo ao que entendemos com a realidade, realizada, nós somos potência, possível, possibilidade, vontade (força) de possibilidade. Quando chegamos aos limites da imobilidade do realizado do nós-mundo, resta-nos sempre a disponibilidade do retorno ao possível, ao potente, à possibilidade, e à ação que fazem com que‘do invisível possam brotar efeitos visíveis’.
Esses efeitos podem se configurar para os outros, à medida que se configuram para nós próprios. Mas, o percurso do processo em que eles se constituem, de uma pré-compreensão, até um desdobramento compreensivo – o que entendemos como ação – é a performance vivencial de um percurso que regularmente engendra a nós próprios e ao mundo que nos diz respeito.
Incontornavelmente compreensiva, e implicativa (não explicativa), a performance da ação pode se limitar à reserva do nosso modo compreensivo de ser; ou pode, também, ser compreensão-e-muscul-ação (compreensão e ação muscular). Explicitar-se, seja na objetividade meramente compreensiva, seja na objetividade compartilhada. Sempre devir, sempre vir a ser. Sempre o novo, o inédito, o diferente, o inesperado, o espantoso. ‘Devir’ vem de ‘vento’. O devir é uma ventura. A ventura da vida ‘à ventura’. O que, na performance, performação de figura e fundo, devém com a ação é a potência do possível, a potência da possibilidade, da vontade de possibilidade. Que se forma na incerteza. E que, acontecimento, deforma o mundo acontecido, numa ‘arte de perigar’ a que chamamos de experi(g)mentação, e que é fenomenológico existencial empírica.
Nesta arte de perigar, que é a experimentação fenomenológico existencial empírica, nesta vida à ventura, a ventura é imprescindível. E a ventura, o vento, é o ‘Estésico’. Um vento, ventura que sopra no Mediterrâneo Oriental, e que impulsionava as velas dos navios... Nele inspirados, os gregos chamaram de ‘estésico’ o modo de sermos da sensibilidade. É que o modo sensível de sermos, o modo de sermos que é corpo, vivido e sentidos; fenomenológico e existencial, pré-reflexivo, pré-teórico, pré-comportamental, pré-pragmático. É como um vento, como uma ventura. Todo ele impregnado de possibilidade, de potência – que é apreendida na com(a)preensão. E de ação: este modo de sermos que nos retira da imobilidade das realidade, no exercício da força de seremos possibilidade. Os momentos em que habitamos este modo de sermos da força, e da ação, estésicos, configuram a est-ética como vivência. Se não prática, porque pragmática do inútil, eminentemente poi-ética: ética da potência produtiva de uma pragmática do inútil.
Assim é a Gestal-terapia, assim somos: para além do real, em nosso modo originário de ser, est-éticos, poiéticos, inúteis produtivos.
::: Texto de Afonso H Lisboa da Fonseca, da Escola Experimental de Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial - http://blogdoafonseca.blogspot.com/

domingo, 23 de agosto de 2009

Doutora em psicologia fala sobre a Gestalt-terapia

Alexandra Tsallis, doutora em psicologia pela UERJ, fala sobre a Gestalt no Brasil, em entrevista no site do CRP-RJ e que merece registro aqui:
Diagnóstico: "Se tivermos que pensar em cura, pensamos em aumentar o leque de possibilidades que uma pessoa tem na vida. Arnold Beisser afirma, num texto chamado 'A teoria paradoxal da mudança', que o processo psicoterápico é talvez o processo pra que a pessoa possa ser aquilo que ela já é. Ele chama isso de teoria paradoxal da mudança porque, afinal de contas, é estranho perguntar como você pode vir a ser aquilo que você já é, mas a idéia também é uma idéia que passa pela aceitação, pela possibilidade que uma pessoa tem de se ver mais plena, mais íntegra."
Métodos de intervenção: "A idéia da Gestalt é que você possa experimentar, ou seja, vivenciar as coisas. Não é alguma coisa que passa apenas por um entendimento racional, mas por um entendimento integral, holístico — que é você poder entender as coisas rapidamente, mas você poder sentir, você poder se expressar."
Comportamento ético: "Agir eticamente na psicoterapia significa que você possa acompanhar uma pessoa naquilo que ela precisa, mas que você também saiba identificar qual é o limite nesse acompanhamento, que você saiba até onde você pode ir. Pra mim, a clareza ética é aquilo que eu possa fazer, mas o que eu saiba diferenciar daquilo que eu não posso fazer, aquilo que eu não tenha capacidade. Não acredito que existam psicoterapeutas que possam atender a tudo e qualquer pessoa. Eu acho que é preciso saber aquilo que eu não tenho condição de atender, seja porque eu não tenha o conhecimento técnico, seja porque eu não tenha o instrumental pessoal. O instrumento do psicoterapeuta é ele próprio, ele é um ser humano, então se o psicoterapeuta não puder ficar de posse da sua humanidade, ele não vai se dar conta dos seus limites. Alan Badiou diz que ser ético é ser fiel a si próprio, aos seus princípios. Aliás, acompanhar é uma palavra que tem uma etimologia bonita, porque significa “compartilhar o pão.”
Atuação gestáltica em relação às outras abordagens: "Acho que a Gestalt-terapia está voltada para o aqui e o agora, entendendo que o “aqui-agora” não é sinônimo do presente, mas é sinônimo daquilo que está presente no momento. Nesse sentido ela trabalha com o fenômeno e ela trabalha enfatizando a dimensão vivencial. A dimensão vivencial sendo aquilo que é uma mistura de pensar, agir e sentir, aquilo que pode ser sintetizado, didaticamente, em pensar, agir e sentir. É porque uma vivência é sempre mais, não é? A gente separa didaticamente, mas é mais do que isso."

Gestalt e psicanálise: discordâncias diametrais

Curiosas são as divergências da Gestalt-terapia com a psicanálise. Vejamos algumas delas e que satisfazem a prática psicológica sob vários prismas de atuação:
O PASSADO >
:::: A psicanálise dá uma grande importância ao passado, como constituinte da personalidade do invidíduo. Os traumas do passado são as "raízes" dos problemas, sendo o responsável pelas doenças psíquicas.
:::: Na Gestalt o passado é assimilado apenas como parte de nós, trazido como situações inacabadas, a chamada "gestalt incompleta". O passado não é mudado, portanto a Gestalt privilegia o aqui, agora.
AS COISAS >
:::: A psicanálise estuda e evidencia o "porquê" das coisas, obtendo explicações.
:::: Na Gestalt-terapia os porquês são palavrões e não conseguem levar o terapeuta a uma compreensão do problema. Esta usa o "como" e assim se consegue orientar e dar perspectiva. Para a Gestalt, o uso dos porquês favorece somente os inquéritos. O como engloba o que é estrutura, comportamento.
ANSIEDADE >
:::: A psicanálise vê como um assunto complexo.
:::: A Gestalt, como uma tensão entre o agora e o depois, em razão das inseguranças futuras.
A CULPA >
:::: A Gestalt concorda que a culpa é um "ressentimento projetado", na tomada de consciência de si mesmo, do mundo e do que está na zona intermediária da fantasia.
:::: Freud diz que existe algo entre você e o mundo, e analisou apenas esta zona intermediária, desconsiderando a auto consciência e/ou a consciência do mundo. Sendo assim, para a Gestalt ele deixa de considerar o que podemos fazer para estarmos em contato com o nosso self e com o mundo.
SITUAÇÕES >
:::: Freud dá maior importância às resistências.
:::: A Gestalt enfatiza as fobias, evitações e fugas. Enfrenta-se o que é evitado pelo cliente.
SUPERFÍCIE E PROFUNDIDADE >
:::: A psicanálise traz do estudo do inconsciente as profundezas recalcadas do indivíduo.
:::: A Gestalt vai prestar atenção no óbvio, no que está contido na superfície, no mostrado.

O passado retido e o futuro almejado

Fritz e Laura Perls ressaltaram a importância da afetividade associada à motricidade, além da verbalização, para a constituição de um fenômeno psíquico. Assim como Kurt Goldstein também postulava, os “sintomas” são índices da “forma” (Gestalt), como cada organismo se ajusta em um determinado meio sócio-ambiental.
Atentaram como os pacientes (mais tarde clientes) buscavam integrar ou procuravam evitar as múltiplas partes envolvidas em suas experiências cotidianas, especialmente aquelas partes que se repetiam na relação concreta com os clínicos por ocasião das sessões (no aqui-agora das sessões).
Tais “formas”, segundo o casal Perls, não são juízos conscientes ou conteúdos inconscientes, mas “hábitos” espontâneos de integração e alienação de partes, as quais incluem não apenas a materialidade física do momento, mas, também, os traços daquilo que se reteve do passado e do que se almeja como futuro. De onde se segue o entendimento de que: as “formas”, elas mesmas, não são qualidades pessoais. Elas são ocorrências de campo, compartilhadas por aqueles que participam deste campo e por cujo meio se constitui um “modo” peculiar de “contato” entre o passado e o futuro das atualidades físicas envolvidas.

Kierkegaard e a ironia como revitalizadora da essência humana

Kierkegaard prenunciava, em meados do século 19, sobre os rumos do pensamento moderno. Para ele, o homem estava "perdendo sua referência singular", deixando-se levar pelas seduções do mundo, principalmente pela publicidade. O curioso disso é que, dois séculos depois, e o indivíduo continua mais do que nunca delineado pelas aspirações sedutoras do sistema, em detrimento de sua espontaneidade e caráter puro, fiel à sua natureza.
Vivemos sob a ótica/estética do prazer plausível. Sofrer está na outra ponta e surge como referência contrária aos anseios vivenciais. Kierkegaard empreendeu, em sua filosofia, uma espécie de papel auxiliador deste homem com referência desencontrada, a quem desempenharia as funções de facilitar o caminho, o processo de volta ao natural, no impessoal e plástico, na superficialidade e ações manipuladas. A compreensão conjunta das ilusões a que cerca-se este indivíduo alcançaria a palmatória do próprio facilitador.
O filósofo desenvolveu esta técnica através da "ironia", que consistia em um método de comunicação indireta, utilizado por ele para que naquele que predomina o modo estético de escolher surja primeiramente a inquietação, o impacto, de forma a que este homem, pelo menos, possa reconhecer-se no lugar em que se encontra. E assim abrir a possibilidade de se instaurar o conflito, a indecisão.
É como se um ator vivesse um personagem de si mesmo mais acentuadamente do que a si mesmo, em essência. É viver o "lado B" antes do "lado A". Disse-lhe: (...) quando a interioridade caminha em direção a si mesma, é revelada com intensidade na metamorfose: então a opinião da massa perde o interesse (Kierkegaard, 2007, p.6).